«O sr. Silva, cidadão do Mundo na década de 70,
preferirá que a sua liberdade seja cortada, se lhe for garantido, em contrapartida,
que a lei e a ordem velarão pela sua integridade física. Entre o risco de
morrer e as limitações e proibições aos seus direitos como pessoa humana, o sr.
Silva escolherá o controlo, a fiscalização, a subordinação aos poderes
estabelecidos (e, logicamente, o reforço desses poderes, se eles o entenderem e
desejarem). Entre a vida condicionada e obediente e a imaginação e a iniciativa
próprias, o sr. Silva apostará na concessão de cada vez mais força àqueles que,
em número cada vez mais reduzido são (para ele, sr. Silva, cidadão planetário)
os bastiões da tranquilidade.
Não importa que os telefones sejam escutados, que, na rua e
fora dela, os indivíduos sejam seguidos, que a correspondência seja violada,
que os vizinhos espiem os vizinhos, que os amigos traiam os amigos, que a
intimidade seja regularmente devassada. Para o sr. Silva, o que conta, o que
interessa é que a autoridade seja respeitada e revigorada. Desde que daí
resulte a protecção da sua rica vidinha.
Para o sr. Silva, o que conta é a manutenção do «status
quo», a rotina casa-emprego-casa, o fim-de-semana-da-volta-dos-tristes. Os
outros, os que se atrevem a tentar quebrar esta santa pasmaceira, são
qualificados como atrevidos, oportunistas, ou adjectivo semelhante, que pela
sua mera utilização e propagação, traga a paz à consciência colectiva e
individual e abafe qualquer ligeira hipótese de desassossego seja com quem for
(muito menos consigo próprio).
Quem retire (ao sr. Silva) a sólida convicção da indestrutibilidade
da hierarquia dos valores cristalizados, quem ouse abalar os alicerces dos
edifícios por ele congenitamente construídos, quem o desvie das inertes
estruturas mentais em que a sua curta existência assenta, é de certo um
horrível delinquente que deve ser banido do convívio dos restantes mortais (...)
(É provável que) esta obsessão da segurança, como preocupação máxima do homem 1973,
venha a evoluir. Não por surgirem novo sistemas de valores, ou diferentes
necessidades, ou guerras ou revoluções. Apenas por uma razão: o aborrecimento,
a chatice, o tédio, a maçada.
Aborrecimento de ver os dias sucederem-se sem que
algo de excitante aconteça. Chatice de viver uma vida oca e sem sentido. Tédio
de passar 60 ou 70 anos na Terra sem nada ter criado. Maçada de precisar
embebedar-se ou drogar-se para sentir (...) Medo de mexer nas
bases (de si próprio e da comunidade), por se querer cada vez mais ser igual ao
próximo (o qual, por sua vez, quer acima de tudo ser igual aos outros).
As pessoas não conhecem a origem do seu tédio e geralmente
não procuram descobri-la. Mas o facto indiscutível é que cada vez mais gente
sabe que está chateada, sabe que a sua vida é monótona, sabe que amanhã será cruelmente
igual a hoje como hoje foi igual a ontem (...)»
Francisco Pinto Balsemão, in Para uns sociedade sem chatice, Expresso, nº 28, 14 de Julho de 1973
Dedicada a todos os srs. Silva da minha vida e deste mundo. Eu prefiro continuar a ser assim - inserir aqui adjectivo "que pela sua mera utilização e propagação, traga a paz à consciência colectiva e individual e abafe qualquer ligeira hipótese de desassossego seja com quem for (muito menos consigo próprio)". Eu cá chamo-lhe ser livre e feliz.
E também tudo isto:
Catarina Vilas Boas
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