Na pele de Marie Antoinette

Aquele ar polido nunca lhe inspirara muita confiança. Pessoas que desfilam pelas ruas, com o cabelo certinho e a oleosidade da pele controlada, que se meneiam com a roupa perfeitamente engomada e a combinar, sem vincos, sem a mais pequena nódoa, sem sequer um fio saído. Aquelas pessoas que passam o dia intactas, permeáveis às imperfeições do dia-a-dia, não lhe pareciam reais. Imaginava-lhes os namorados e as namoradas, igualmente lustrosos, as casas perfeitas, sem uma dedada no vidro ou almofada fora do sítio. Os armários perfeitamente organizados por cores, sem uma única meia ímpar. Ele tinha um molho delas que todas juntas não faziam parelha! As casas de banho sem cabelos no chão, sem espuma sobrevivente na banheira, sem uma única gota no lavatório. Mas aquelas pessoas não lavavam as mãos? Ou limpavam a pia com uma toalha no final?

Como é que elas dormiam? Como é que faziam sexo? Se os lençóis das suas camas estavam sempre imaculados, como que esticados industrialmente. Pessoas daquelas não reviravam para um lado nem para o outro. Não tinham insónias. Deitavam-se na cama com o cabelo igualmente dividido por cima dos ombros, recostavam-se na almofada de penas de pavão, fechavam os olhos e dormiam. Era a única explicação que ele encontrava.


Por isso não gostava dela. Daquele ar polido chegava-lhe uma onda de Maria Antonieta. Não a real, coitada, que essa era uma miúda ingénua e inocente - ele sabia porque lhe tinha lido a biografia romantizada em destaque na Biblioteca Municipal. Mas aquela que eles retratavam nos filmes e que tinha dito "Se os pobres não têm pão, que comam bolos". Se bem que essa Maria Antonieta tinha um charme de tresloucada que lhe aguçava o apetite... e ela não!

Ou será que tinha?


Catarina Vilas Boas

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